segunda-feira, 25 de agosto de 2014


Waly Salomão: "Garrafa"

Garrafa

Vá dizer aos camaradas
Que fui para o alto-mar
E que minha barca naufraga.

Leme partido.
Casco arrombado.
Sem farol afunda
Nas pedras dos arrecifes.

Bandeira aos farrapos. Nenhuma estrela guia
Célere desce lá do céu para minha companhia.
Destroços: proa, velame, quilha,
prancha, rede de pescar, arpão,
bússola, astrolábio, boia, sonar...

Que fui para o alto-mar
E que Medina e Meca já não significam
mais nada para mim.

Entrevado
Vista turva
Porto nenhum avisto
Nas trevas da cerração.

Pelejo entre os vagalhões e as rocas
Não apuro os nós de lonjuras das seguras docas
Tampouco os altos e baixos relevos das pedras
que roncam ais
no quebra-mar do cais
Ou os tapetes de mijo e restos de peixes
E patas de caranguejo e frutas podres
Tecidos pelas alpercatas e os pés nus sobre a rampa
do Mercado-Modelo.

Um marinheiro conserta sua embarcação
— corpo de intempestiva casa —
Em pleno alto-mar aberto.
Vá dizer aos meus amigos.

SALOMÃO, Waly. Poesia total. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.