segunda-feira, 20 de janeiro de 2014


Como falar poesia - Leonard Cohen

Toma a palavra borboleta. Para usar esta palavra não é preciso fazer a voz pesar menos que uma onça ou adorná-la com pequenas asas empoadas . Não é preciso criar um dia de sol ou um campo de narcisos . Não é preciso apaixonar-se, nem apaixonar-se por borboletas. A palavra borboleta não é uma borboleta real. Uma coisa é a palavra, outra a borboleta. Se as confundires as pessoas terão o direito de rir-se de ti. Não faças muito com a palavra. Estás tentando sugerir que amas as borboletas melhor do que os outros, ou compreender realmente a sua natureza? A palavra borboleta é apenas um dado. Não é uma oportunidade para adejar, voar, amigar-se com flores, simbolizar beleza e fragilidade, ou personificar de qualquer forma uma borboleta. Não representes palavras. Nunca representes palavras. Nunca tentes elevar-te do chão quando falares de voar. Nunca feches os olhos e inclines a cabeça para o lado quando falares de morte. Não fixes teus olhos ardentes em mim quando falares de amor. Se quiseres impressionar-me ao falares de amor, põe a mão no bolso ou sob tuas roupas e brinca contigo mesmo. Se a ambição e a fome de aplausos levaram-te a falar de amor, tens que aprender a fazê-lo sem aviltar a ti mesmo ou o material.

Que expressão nosso tempo exige? Nosso tempo não exige expressão alguma. Temos visto fotografias de mães asiáticas enlutadas. Não estamos interessados na agonia de teus destrambelhados órgãos. Não há nada que possas estampar em teu rosto que possa igualar o horror da nossa época. Melhor nem tentar. Só vais conseguir o desprezo de quem tem sentido as coisas profundamente. Temos visto nos noticiários homens no extremo da dor e do abandono . Todo mundo sabe que tens comido bem e também que estás sendo pago para estar em cena. Estás diante de pessoas que viveram uma catástrofe. Isto deveria deixar-te muito quieto. Fala as palavras, transmite os dados, não apareças. Todo mundo sabe que estás sofrendo. Não tens que dizer à platéia tudo que sabes sobre o amor a cada linha em que falares de amor. Sai da frente e eles saberão o que sabes, porque eles já o sabiam. Não tens nada a lhes ensinar. Não és mais belo que eles. Não és mais sábio. Não grite com eles . Não tentes entrar à força. Isto é sexo ruim. Se mostrares as linhas de tua genitália, então entregues o que prometeste. E lembra-te que as pessoas realmente não querem um acróbata na cama. De quê precisamos? De estar perto do homem natural, de estar perto da mulher natural. Não imagines que és um cantor amado com um vasto público fiel que acompanhou os altos e baixos de tua vida até este momento. As bombas, os lança-chamas, e toda a merda destruíram mais do que árvores e aldeias. Também destruíram o palco. Achas que tua profissão escaparia da destruição geral? Não há mais palco. Não há mais ribalta . Estás no meio do povo. Então sê modesto. Fala as palavras, transmite os dados, não apareças. Sê sozinho. Sê teu próprio quarto. Não te coloques à frente.

Isto é uma paisagem interior. É dentro. Privado. Respeita a privacidade do material. Estas peças foram escritas em silêncio. A coragem da performance é dizê-las. A disciplina da performance é para não violá-las. Deixa o público sentir teu amor pela privacidade, mesmo que não haja privacidade. Sê uma boa puta. O poema não é um slogan. Ele não pode te divulgar. Não pode promover tua reputação de sensibilidade . Não és um garanhão. Não és um assassino de mulheres. Há todo um lixo sobre gangsters do amor. És um aprendiz da disciplina. Não representes as palavras. As palavras morrem quando as representas, definham, e sobra apenas a tua ambição.

Fala as palavras com a exata precisão de quem confere uma listagem de lavanderia . Não fiques emotivo por uma blusa rendada. Não fiques de pau duro ao dizeres calcinha, não fiques todo arrepiado só por causa da toalha. Os lençóis não devem produzir uma expressão sonhadora em teus olhos. Não é preciso chorar no lenço. As meias não estão lá para te lembrar de estranhas e longínquas viagens. São apenas tuas roupas lavadas. Apenas tuas roupas. Não fiques espiando dentro delas. Use-as, apenas.

O poema não é nada mais que informação. É a Constituição do país interior. Se o declamares e o fizeres explodir com nobres intenções então não és melhor que os políticos que desprezas. És apenas alguém levantando uma bandeira e apelando à mais barata espécie de patriotismo emocional. Pensa na palavra como ciência, não como arte. Elas são um relatório. Estás falando em uma reunião do Clube de Exploradores da National Geographic Society. Essas pessoas conhecem todos os riscos do alpinismo. Elas te honrarão se não te esqueceres disto. Se ficares insistindo neles será um insulto à sua hospitalidade. Fala da altura da montanha, do equipamento que usaste, sê específico sobre as superfícies e o tempo que te custou a escalada. Não procures causar na audiência suspiros e ais. Se alcançares suspiros e ais não será um resultado da tua apreciação do evento, mas da deles. Virá das estatísticas e não do tremor da voz ou das mãos cortando o ar. Virá dos dados e da silenciosa organização da tua presença.

Evita o floreio. Não tenhas medo de parecer fraco. Não te envergonhes do teu cansaço. Ficas bem quando estás cansado. Ficas como poderias ser sempre. Agora vem para os meus braços . És a imagem da minha beleza .
In Death of a Lady's Man (1978) –http://homepage.usask.ca/~mid422/lcmisc.htm. Tradução de Roberto Mallet.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014



Os principais estratos que aprisionam o homem são o organismo, mas
também a significância e a interpretação, a subjetivação e a sujeição. São
todos esses estratos em conjunto que nos separam do plano de consistência e da máquina abstrata, aí onde não existe mais regime de signos, mas onde a linha de fuga efetua sua própria positividade potencial, e a desterritorialização, sua potência absoluta. Ora, a esse respeito, o problema é o de fazer bascular o agenciamento mais favorável: fazê-lo passar, de sua face voltada para os estratos, à outra face voltada para o plano de consistência ou para o corpo sem órgãos. A subjetivação leva o desejo a um tal ponto de excesso e de escoamento que ele deve ou se abolir em um buraco negro ou mudar de plano. Desestratificar, se abrir para uma nova função, diagramática. Que a consciência deixe de ser seu próprio duplo e a paixão, o duplo de um para o outro. Fazer da consciência uma experimentação de vida, e da paixão um campo de intensidades contínuas, uma emissão de signos-partículas. Fazer o corpo sem órgãos da consciência e do amor. Servir-se do amor e da consciência para abolir a subjetivação: "para se tornar o grande amante, o magnetizador e o catalisador, é preciso antes de tudo viver a sabedoria de não ser senão o último dos idiotas"28. Servir-se do Eu penso para um devir-animal e do amor, para um devir-mulher do homem. Dessubjetivar a consciência e a paixão. Não existiriam redundâncias diagramáticas que não se confundem com os significantes nem com os subjetivos? Redundâncias que não seriam mais nós de arborescência, mas sim retomadas e precipitações em um rizoma? Ser gago de linguagem, estrangeiro em sua própria língua,
"ne do ne domi ne passi ne dominez pas
ne dominez paz vos passions passives ne
.......
ne do dévorants ne do ne dominez pas
vos rats vos rations vos rats rations ne ne...29

28 Henry Miller, Sexus, p.307. O tema do idiota é ele mesmo bastante variado. Percorre explicitamente o cogito, segundo Descartes, e o sentimento, segundo Rousseau. Mas a literatura russa o arrebata para outras vias, para além da consciência ou da paixão.

29 Gherasim Luca, Le chant de Ia carpe, p.87-94.
Deleuze e Guattari - 587 A.C. - 70 D.C. - SOBRE ALGUNS REGIMES DE SIGNOS - Mil Platôs 2

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Chez Deleuze

terça-feira, 14 de janeiro de 2014


"Estamos trespassados de palavras inúteis, de uma quantidade demente de falas e imagens. A besteira nunca é muda nem cega. De modo que o problema não é mais fazer com que as pessoas se exprimam, mas arranjar-lhes vacúolos de solidão e de silêncio a partir dos quais elas teriam, enfim, algo a dizer. As forças repressivas não impedem as pessoas de se exprimir, ao contrário, elas as forçam a se exprimir. Suavidade de não ter nada a dizer, direito de não ter nada a dizer; pois é a condição para que se forme algo raro ou rarefeito, que merecesse um pouco ser dito". ___________


Gilles Deleuze

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

a poesia é a única subversão possível. 
rompe com a lógica da linguagem. 
subverte sujeito, verbo, predicado. 
nossa estrutura de pensamento. 
a poesia não quer provar nada. 
não é o discurso da verdade como o da ciência e o da filosofia. 
nem o doutrinário como o da religião, da política, da propaganda.
nem o feijão com arroz das conversas nossas de cada dia. 
a poesia é apenas sedução. feita de som e imagem verbal. 
a poesia é o silêncio da palavra. 
a poesia é sempre outra coisa.
a poesia é ..... e não é.
(Chacal)
POTÊNCIA DE AMAR 
À minha vontade abjeta de ser amado, substituirei uma potência de amar: não uma vontade absurda de amar qualquer um, qualquer coisa, não se identificar com o universo, mas extrair o puro acontecimento que me une àqueles que amo, e que não me esperam mais do que eu a eles, já que só o acontecimento nos espera, Eventum tantum. Fazer um acontecimento, por menor que seja, a coisa mais delicada do mundo, o contrário de fazer um drama, ou de fazer uma história. Amar os que são assim: quando entram em um lugar, não são pessoas, caracteres ou sujeitos, é uma variação atmosférica, uma mudança de cor, uma molécula imperceptível, uma população discreta, uma bruma ou névoa. Tudo mudou, na verdade.
Gilles Deleuze - Diálogos (Deleuze e Parnet)